TRANSATRAVESSADOS

12 de outubro de 2013

O MENINO ARTEIRO




Coroa de sonetos dá ao poeta o menino arteiro 
Que cresceu para errar honrando a sua infância 
Meia noite e quarenta pousa fênix no ponteiro 
Que é ocaso e aurora a guiar minha alternância 

Vim doutro mundo por barão assinalado 
A minha liberdade negreira foi quilombola 
Fui um último canibal caeté genocidado 
E ao conhecer a mim mesmo me fiz escola 

Dos deuses eu roubava só o açúcar refinado 
E devoravam meu fígado aquelas outras crianças 
Escrevi o meu nome lá onde morri afogado 

Ou rimei suas imagens com minhas semelhanças 
E cresci desde dentro desse infante malvado 
Oferecendo poesia sob um manto de lembranças 



II

Oferecendo poesia sob um manto de lembranças 
Eram as próprias artes as musas que me inspiravam 
Desvendei a justiça à vista do infiel das balanças 
E fugi à medida que meus passos se desfraldavam 

Extraíram minhas amígdalas mas continuei poeta 
Cantando em versos desde o insulto até a piada 
Por onde pedalei cavalos e cavalguei de bicicleta 
Tive mil inimigos para dar conselhos e porrada 

Fui sempre assim com quem escreveu e não leu 
Contra os bundas moles mostrei meu traseiro 
E assim só cagava andando até que o pau comeu 

Crucifiquei um rato vivo sobre o formigueiro 
Fui o herói que matou todos os vilões menos eu 
Reinava a rima trocada por meu reino inteiro 



III 

Reinava a rima trocada por meu reino inteiro 
Quando a brincadeira começou a ter mais graça 
Cortaram minha cabeça para eu ser brasileiro 
E assim minha arte foi ainda ser antena da raça 

O autoconhecimento me pôs calos na mão 
Baixos instintos que escalpelaram um cabaço 
Não por acaso adquiri uma fama de bufão 
Pois de menino me faço descabelado palhaço 

Quando todos ordenam mas ninguém me controla 
É a minha careta indômita sob máscaras mansas 
De língua tão bem afiada que ninguém me amola 

Mudei tanto de tamanho que gostei de mudanças 
Até que um dia me mandaram mudo para a escola 
Onde o tempo fez de bobas as minhas esperanças 



IV 

Onde o tempo fez de bobas as minhas esperanças 
Acertei na minha cabeça a distância de uma pedrada 
Quando carnaval e finados tem as mesmas danças 
O tempo me seduz qual a carniça que quer ver pelada 

Eu me sentava torto para escrever certa linha 
Que me garantiria todo direito de voar 
E a cada vez que decolo daquela escrivaninha 
Não há maioridade que me faça voltar 

Entrei em cena comendo o meu papel de autista 
E até as lágrimas que sangrei eram fingidas 
Fui sozinho o grande elenco nunca protagonista 

Pois bebi a tinta azul da caneta dos suicidas 
E me fez triste não morrer precocemente artista 
As minhas febres já eram de liras coloridas 



V

As minhas febres já eram de liras coloridas 
Quando chorei leite sobre lágrimas derramadas 
Diagnosticaram meu nascimento com vidas 
Fui ser iniciado na religião dos contos de fadas 

E nutrido com colheradas de labirintos 
Entortei o meu giz ao aprumar paredes 
Dei cambalhotas com planetas extintos 
Boiei superficial a chorar minhas sedes 

Bati punhetas para apanhar cicatriz 
Roubava gibis e frutas ou beijo de professora 
Lúdicos tantos troca-trocas que fiz 

Sempre com o mote livre e a verve gozadora 
Daquilo que não existe fui aprendiz 
Diante do meu leitor e atrás da minha leitora 



VI 

Diante do meu leitor e atrás da minha leitora 
Fui aquele que cresceu para plagiar a si mesmo 
Calculo a mesma temática comprometedora 
Sempre outro e diverso de ti mas nunca a esmo 

Com o fogo de sonhar artifícios mijei colchões 
E ainda moleque preguei chiclete na cruz 
Pichava as igrejas e bibliotecas com palavrões 
Com a estética torpe de um gato andaluz 

Escrevi cartas anônimas que assinava psicopata 
Mordi meninas e maçãs do amor mordidas 
E em desaprender boas maneiras fui autodidata 

Naveguei em tantas páginas desconhecidas 
E saqueando dicionários com poética de pirata 
Enterrei minhas estrofes em ilhas perdidas 



VII 

Enterrei minhas estrofes em ilhas perdidas 
Cujos mapas achei que seria ridículo publicar 
Curtas demais as minhas horas cumpridas 
Escrevendo por extenso o meu tempo devagar 

Fumei no peito o que ainda trago escondido 
Deu pé de cachimbar saciado com saci 
Para ser virtuoso era melhor não ter nascido 
Lapidei a minha morte desde que nasci 

Minha vida foi o circo onde a despeito das palhaçadas 
As quais a plateia aplaudia mais acolhedora 
Foi a queda do trapezista o que causou as gargalhadas 

Como por mágica vi a obra prestidigitadora 
E continuando o espetáculo daquelas lonas queimadas 
Sonhei inventar uma brincadeira libertadora 



VIII 

Sonhei inventar uma brincadeira libertadora 
Tanto de Deus como do reino desde mundo 
Alguma nova espécie de criação precursora 
Cujo acesso me desce hoje o mais profundo 

Já que vim ao mundo no dia mesmo de Nero 
Em um batismo de fogo tive de ser lavado 
E o meu ardor de berço é outro que incinero 
Desde criança sendo um elemento levado 

Comunguei com o irmão Rimbaud nosso gênio ruim 
E fui marcado tão premeditadamente sem querer 
Que me excomunguei convertido em demônio mirim 

Tramei alguém lógico que só tinha de acontecer 
E desci par assim pois um egoísta eu só fui para mim 
Ontológico por pura púrpura falta do que nascer 



IX 

Ontológico por pura púrpura falta do que nascer 
Ao menos fui as crianças e mais eus a criançada 
Fiz de mim o mais estranho para me reconhecer 
E fui mestre em tudo que se pode criar do Nada 

Quis sair justo em um sábado de madrugada quente 
Mas não encontrei sequer uma vagina pelo caminho 
Nasci de cesariana ao fim daquela jornada nascente 
Cruzei o arco do triunfo sendo ainda um bebezinho 

Minha cela foi a fralda e minha casaca o pijama 
Escrevi por cima da minha certidão e embaixo assino 
Vim para ser o próprio poema que me declama 

Fui só mesmo que eu é um outro amigo que imagino 
E o meu primeiro nome tem vidas por anagrama 
Nada me devolveria ao conforto daquele zero uterino 




Nada me devolveria ao conforto daquele zero uterino 
Cantei amarga a novidade na pose do enforcado 
Maldito era o nome inédito que dei àquele meu hino 
Que sem saber censura me declamava abortado 

Desenvolvida comigo a parca sombra minha 
Um dia adolesci do tímido mal de súbito amar 
E foi na enciclopédia que tive por madrinha 
Que lendo catarses arranquei os olhos a viajar 

Enlouquecia até aos imaginários dos meus amigos 
Pendi muito para os arredios sem me arrepender 
Fui tão individualista que parecia ter dois umbigos 

Era o herege desde que acordava até o anoitecer 
Mais insuportável do que me pareciam os castigos 
Erros e diabruras me faziam santo ao adormecer 



XI 

Erros e diabruras me faziam santo ao adormecer 
Com os pesadelos mais intensos assim que acordava 
Tive de cabular aulas para arranjar tempo de ler 
E ao fugir do tédio da escola ninguém me alcançava 

Trago em mim cicatrizes abismais como brasas 
Escarlates como era o meu longo cabelo lindo 
No sonho fantástico em eu que voava sem asas 
O incrível é que apenas caminhava dormindo 

Vesti armaduras e escafandros entre outras fantasias 
Cantando cheguei a me afundar no amarelo submarino 
E compus bolhas de sabão assoviadas com melodias 

Pelo medo do escuro esfrego os olhos a ver se alucino 
Com braços de ferro a dourar tolices com alquimias 
Tímido duelei com moinhos gigantes desde pequenino 



XII 

Tímido duelei com moinhos gigantes desde pequenino 
Mas sob o artista que retrato em um cofre a decrepitude 
É que me disfarçava de normal como manda o figurino 
No fundo jazo qual a flor afogada na fonte da juventude 

Sou o raio que reincide certamente incorrigível 
Espelho que reage e se imita irrefletidamente dual 
Acidentalmente de propósito a criança terrível 
Que nasci ainda renasce por pura imposição fetal 

De capeta me chamavam atendendo Satã 
Analfabetizado desde quando aprendi a escrever 
Para a mais feia é o que escrevi na maçã 

E discordei daquelas regras de ouro por aprender 
Caí de cabecinha mole na realidade chã
Ocorre que inconsequente eu brinquei de crescer 



XIII 

Ocorre que inconsequente eu brinquei de crescer 
Desde o cerne mesmo do que fui sem solução 
Para me tornar o grande problema que vim a ser 
Cresci ao redor do meu pequeníssimo coração 

E é mesmo o fim da picada mas não há atalho 
Comparado a isso ser adulto é outro rito de passagem 
Ainda hoje costumo agir como aquele pirralho 
O que faz de mim um retardado ou espírito selvagem 

Reputo que só me conhecem pela reputação manchada 
Mas não foi por ler livros que fui levado ao desatino 
Que desde sempre tive por escudeira minha quixotada 

Plantei raízes na merda em que daninho eu germino 
E só não renasço se mente a minha cultura empoeirada 
Só para o poeta destarte voltar a ser o arteiro menino 



XIV

Só para o poeta destarte voltar a ser o arteiro menino 
Escrevi para ele estes redemoinhos porque tenho passado 
Em um espelho ele lia em mim o seu próprio destino 
Seu futuro voltou nesta metamorfose que me hei tornado 

Apesar de trocada a identidade quando virei cidadão 
Minha obra continua sua cartilha de erros enciclopédica 
E quando me toca a saudade de usar da má educação 
Meus passos amarram os nós de sua botinha ortopédica 

Ele me fez ver que vida inteligente só há em Marte 
Com ele me nino em canto do seu cancioneiro 
Foi o menino que fui quem me ensinou a fazer arte 

Aprendi com ele que poético é ser bagunceiro 
E quando a inquieta poesia de mim não fizer parte 
Coroa de sonetos dá ao poeta o menino arteiro 



XV 

Coroa de sonetos dá ao poeta o menino arteiro 
Oferecendo poesia sob um manto de lembranças 
Reinava a rima trocada por meu reino inteiro 
Onde o tempo fez de bobas as minhas esperanças 

As minhas febres já eram de liras coloridas 
Diante do meu leitor e atrás da minha leitora 
Enterrei minhas estrofes em ilhas perdidas 
Sonhei inventar uma brincadeira libertadora 

Ontológico por pura púrpura falta do que nascer 
Nada me devolveria ao conforto daquele zero uterino 
Erros e diabruras me faziam santo ao adormecer 

Tímido duelei com moinhos gigantes desde pequenino 
Ocorre que inconsequente eu brinquei de crescer 
Só para o poeta destarte voltar a ser o arteiro menino 

  

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